Evangelhos Dançantes
Obra e polêmica e marcante, Jesus Cristo Superstar é fundamental para se compreender não apenas os anos 60/70, mas também serve como uma outra perspectiva para o mito no qual se baseou.
por Bruno Cal
Nos idos dos anos 60, uma então desconhecida dupla se formou para compor um revolucionário musical, tomando por motivo uma história com a qual poucos até então ousaram trabalhar. Contar a paixão de Cristo musicalmente e dar voz àquele que é considerado o seu traidor (o apóstolo Judas Iscariotes), por si só eram razões que desmotivariam qualquer um. Mas os hoje consagrados Tim Rice e Andrew Lloyd Webber se debruçaram sobre um projeto que, abraçado pelo calor humano e contestatório daquela época e de sua contracultura em ascensão, pôs por terra todos os prognósticos pessimistas. Jesus Cristo Superstar se mostrou um sucesso.
Não demorou para que se enxergassem as possibilidades cinematográficas daquela obra da dupla que é hoje considerada a mais bem sucedida dos musicais da Broadway (autora, dentre outros, de O Fantasma da Ópera e Cats). O fato é que, já em 1973, a adaptação dos musicais e envolventes evangelhos segundo Judas ganhou corpo, sob a batuta do experiente Norman Jewison (do clássico Carruagens de Fogo). Aos competentes atores do musical encenados naquela época nos teatros, foram dados os seus correspondentes papéis na produção. Assim, sendo os talentosíssimos Ted Neeley, Carl Anderson e Yvonne Elliman incorporaram, respectivamente, Jesus Cristo em sua imagem iconoplástica mais clássica (louro de cabelos longos e barba), um Judas negro - que não sabe como reagir, com respeito ou desprezo, à personalidade do amigo - e uma Maria Madalena asiática.
Apóstolos usando calças boca-de-sino e ostentando os penteados mais esdrúxulos da década de 70, soldados romanos usando metralhadoras, calças camufladas e coturnos, um rei Herodes extremamente afetado, contrabandistas de haxixe, granadas e mulheres negociando impunemente nos templos hebreus, tanques de guerra: a incorporação de elementos tão comuns naqueles idos marcados pela ascensão do feminismo, do "amor livre", das drogas como "formas de expandir a mente" (vide a meteórica carreira de Jim Morrison, do The Doors) e a guerra do Vietnã, contribuíram para a composição de um cenário não destoante em seus propósitos, mas extremamente verossímil e contemporâneo. Longe de parecer algo desrespeitoso à história original, o Cristo de Rice, Webber e Jewison é fascinante.
Mas o personagem que dá tonica a obra é mesmo Judas (Anderson, excelente). Sua caracterização de um Judas inseguro e sem saber o que pensar de seu grande amigo, misto de fascinação e medo, seu caráter contestatório com o qual julga as ações de Cristo que lhe parecem contraditórias e o remorso de o entregar aos romanos - todas essas nuances encontraram em Anderson o mais perfeito acabamento. Vale lembrar que Judas é o narrador desta estória, o que faz com que sua voz tenha um peso decididamente maior aqui do que nas versões já conhecidas, é através dos seus olhos que esta versão adquire uma nova e original perspectiva. Ponto para Anderson, que soube exprimir como ninguém a complexidade psicológica de uma personalidade cujas motivações eram até então ignoradas.
A direção de arte é outro trunfo do longa. Ao adotar toda uma gama de referências contemporâneas, garantiu-se a obra sua atemporalidade, ao mesmo tempo em que levantou diversas questões particulares aquele período histórico, como a Guerra do Vietnã e a segregação racial dentro dos Estados Unidos. Qual era a forma que até então a população média norte-americana encarava as crescentes vozes contestatórias a sua falida política racial e ao seu envolvimento com o Vietnã? Essas eram as questões pouquíssimo levantadas até então e o longa contribuiu fundamentalmente no seu posterior debate e tomada de consciência, com o público americano passando a repudiar uma guerra tão absurda em sua contagem de vítimas quanto o era em seus propósitos.
Como musical, Jesus Cristo Superstar também triunfa com suas canções rock hoje clássicas, que retratam as principais passagens da paixão de Cristo. Canções que merecem, pelo seu poder melódico e seu ritmo marcante, figurar no hall dos grandes clássicos do rock. Decididamente, uma nova abordagem do evangelho, mais rock e dançante, é verdade, mas não menos profunda e válida. Uma nova versão para aqueles que se dispuserem a abdicar de seus preconceitos e expandirem sua consciência acerca do nosso mito mais forte e antigo, um mito fascinante, não estático como um dogma incompreensível, mas vivo e pulsante como força constituinte de nossa realidade.