Do Mar ao Mito
Esteticamente impecável, Imensidão Azul, de Luc Besson bebe da fonte
das narrativas épicas clássicas numa livre criação a partir da vida
de um renomado campeão de mergulhos para a construção de um herói
mítico, telúrico e contemporâneo, mas não menos fascinante do que os
já célebres Aquiles e Ulisses.
por Bruno Cal
O que diferencia um homem comum de um herói mítico? A resposta está
no modo diferenciado como os feitos (cotidianos ou não) de ambos se
fazem conhecer. Os de um homem meramente comum se inscrevem num
mundo de caráter eminentemente prático; os de um herói mítico, num
mundo não somente empírico, mas, acima de tudo, simbólico.
Embora, quanto a este aspecto, ambos sejam completamente distintos, guardam, contudo, uma ligação bastante forte e deveras seminal. Ambos os homens - o ordinário e o extraordinário - são, afinal, homens como quaisquer outros e os seus feitos, dentro de seus respectivos campos de atuação (pessoal, profissional, ou de qualquer outra instancia), não são, afinal, fundamentalmente diferentes um do outro. O que os torna diferentes é o modo como são retratados. Os de um homem considerado comum são fadados a um esquecimento quase que instantâneo; os de um herói, à posteridade.
É, afinal, o modo como o cultuado Luc Besson constrói o seu Imensidão Azul (The Big Blue, França / EUA / Itália, 1988), filme com o qual o cineasta francês ganhou notoriedade internacional. Besson busca, de um modo todo seu de fazer cinema, construir um épico contemporâneo, onde o papel de protagonista / herói mítico cabe a um seu ídolo de juventude, o já falecido recordista de mergulhos Jacques Mayol (que, junto a Besson, vem a assinar o argumento da obra).
Contudo, a única correspondência que o Mayol real e o Mayol fílmico (Jean-Marc Barr, hoje cineasta) conservam entre si é o nome. Nada - exceto o nome e a sua seminal ligação ao mar - nos permitem associar um ao outro. Isto porque o filme não é uma biografia, mas uma livre composição sobre a vida de Mayol. É, acima de tudo, uma construção mítica sobre os feitos extraordinários de um homem comum. O Mayol fílmico não é somente mítico, como telúrico. Se se sente pouco à vontade e desconfortável em terra filme, o Mayol de Besson é um autentico super-homem debaixo d'água. Como a um semideus, nada ali parece lhe afetar (nem a enorme pressão subaquática, nem a privação do tão precioso oxigênio).
As origens do Mayol fílmico remontam a uma onírica infância em uma paradisíaca ilha grega. Mergulhos freqüentes e uma inabalável amizade (bem como uma velada rivalidade) com outro garoto tão apaixonado pelo mar quanto o próprio Mayol, Enzo Molinari (interpretado em maioridade pelo excelente Jean Reno, que veio a trabalhar mais uma vez com Besson no ótimo O Profissional, de 1994), compõem o cotidiano do futuro recordista subaquático. Separados por 20 anos, os dois mergulhadores se reencontram as vésperas do campeonato mundial de mergulho, durante o qual terão de se enfrentar não só pelo titulo, mas pelo reconhecimento do respectivo rival.
Personagens caricaturescos, situações cômicas e tons extremamente coloridos dão um tom leve e bem-humorado ao ousado épico de Besson (bem como aos seus demais filmes, visto se tratar de uma das características mais marcantes do cinema do diretor, que também flerta abertamente com o seu contemporâneo cinema americano). A bela Rosanna Arquette impressiona em sua interpretação como Johana Baker, a mulher que se apaixona pelo esquivo Mayol. Esteticamente impecável (méritos, dentre outros, da belíssima fotografia de Carlo Varini), o filme tem na antológica trilha sonora original de Eric Serra (habitual colaborador de Besson em seus filmes) um dos seus pontos mais fortes.
Visualmente irrepreensível, Imensidão Azul é uma autentica aula de planos! Besson se apropriou de câmeras de uso (ainda hoje) pouco convencional no cinema e fez experimentações muitíssimo bem sucedidas em matéria de enquadramentos - isso, sem falar do competentíssimo uso dos travellings ao longo da obra -, o que dá sempre ao filme fôlego novo. Deste modo, é extremamente difícil se cansar ao longo das quase três horas de filme. Ousados, mas muito bem compostos e, sobretudo, lindos, os planos deste ótimo Imensidão Azul compõem um espetáculo à parte, capazes de encher os olhos até do mais exigente cinéfilo.