Fábula Amoral
"A cada 12 pessoas no mundo, há uma arma. A minha preocupação é: como armar as outras 11?" (Yuri Orlov).
Um dos melhores e mais criativos filmes de 2005, O Senhor das Armas é, desde a sua seqüência inicial, brilhante! Afinal, qual a melhor forma de expor o risco que representa uma arma de fogo a todos nós do que mostrando para que ela foi criada? A diferença é que o relativamente desconhecido diretor, Andrew Niccol (S1m0ne e Gattaca - A Experiência Genética), valendo-se de uma ousadia raramente vista na história do cinema americano contemporâneo, opta por contar, durante os créditos iniciais do longa, uma pequena estória dentro da estória principal. A sua câmera acompanha a trajetória de uma única bala, desde a sua cuidadosa confecção em uma fábrica, seu manuseio, comércio e sucessivos transportes até seu depósito e uso em uma metralhadora numa das constantes guerras civis africanas, quando atinge acidentalmente a cabeça de uma criança que estava próxima e nada tinha a ver com o conflito.
O Senhor das Armas surpreendeu público e crítica no ano passado quando esteve melhor do que nunca contextualizada pelo referendo das armas de fogo no Brasil. Com o seu recente lançamento em DVD, eis a oportunidade que faltava para conferir este filme que é tão chocante e explosivo quanto o assunto do qual trata.
Yuri Orlov (Nicolas Cage) é filho de imigrantes ucranianos e que, ainda criança, vai para os Estados Unidos. Seduzido desde sempre pelo american way of life, ao ambicioso Orlov não resta alternativa senão ascender economicamente à margem da sociedade seguindo uma vocação que lhe parece natural: o contrabando de armas. Sua impressionante carreira como homem de negócios amoral que desconhece princípios e ideais lhe permite ter tudo o que sempre sonhou: a admiração do irmão mais novo (Jared Leto, de Alexandre e Clube da Luta) e o amor da mulher por quem sempre foi apaixonado (a belíssima Bridget Moynahan), mas também a implacável perseguição do agente da Interpol Jack Valentine (Ethan Hawke, de Assalto a 13a. DP e Dia de Treinamento, além de Gattaca).
Orlov é narrador de sua própria história, jamais manifestando remorso ou consciência durante uma transação. Seus comentários são ácidos e ferinos, jamais poupando as instituições políticas e sociais, como se tentasse minimizar a si mesmo e a sua consciência o que faz de errado. Para ele, aliás, nada do que faz é imoral ou errado e, ao falar sobre o porque de não mais negociar com Bin Laden, por exemplo, Orlov dispara: "nunca se deu devido a questões morais; os cheques deles simplesmente retornavam". O cinismo dos seus comentários e o seu caráter um tanto niilista casam perfeitamente com as músicas da trilha sonora escolhida a dedo para ilustrar com ironia as mais diversas passagens de sua carreira e vida pessoal.
Com O Senhor das Armas, Niccol tenciona ser chocante, engajado. Não faltam referencias a recente história contemporânea, quando as armas parecem ter adquirido o estatuto de divindades e são tão comuns em nossas vidas (com os cada vez mais violentos jogos de videogames e filmes, por exemplo) quanto o são para os cada vez mais jovens soldados africanos (muitos deles, crianças que mal tem forças de carregar as metralhadoras que portam).
As suas personagens são porta-vozes do seu discurso, que não economiza críticas a nada, muito menos aos supostos motivos alegados para a realização da desastrosa invasão ao Iraque recentemente. Valentine é incisivo: "Falam de armas de destruição de massa, mas as verdadeiras armas que matam, que mais ceifam vidas, não são mísseis ou bombas de hidrogênio. São as pequenas armas, de fácil manuseio por qualquer pessoa: pistolas e metralhadoras". Mais tarde, Orlov complementa um discurso bem dirigido a administração de George Bush: "Sou um mal necessário. Chamam-me de contrabandista, mas sou apenas um pequeno comerciante perto do maior comerciante de armas do mundo, o exército dos Estados Unidos da América. Em um ano, vendo menos armas do que ele produz em apenas um dia".
Politicamente engajado, embora amoralmente narrado: sobre esta aparente contradição, é que O Senhor das Armas se constrói como um dos mais contundentes discursos contra a administração belicista norte americana e como uma das mais gratas surpresas do seu cinema nos últimos anos. A criatividade de sua montagem só encontra páreo na acidez do seu discurso. Definitivamente, um filme não apenas para quem acredita em um "cinema politizado", mas quem aprecia, acima de tudo, o "bom cinema".