Mundo em Preto e Branco
Sin City - A Cidade do Pecado, de Frank Miller e Robert Rodriguez, já foi classificada como a melhor adaptação de uma HQ para o cinema. Mas quais são os parâmetros postos em jogo numa adaptação em que a liberdade proporcionada pela sétima arte foi intencionalmente sujeitada as limitações da nona arte?
por Bruno Cal
Desde que os quadrinhos deixaram de ser (ou "parecer" aos olhos daqueles que mais o depreciaram ao longo de sua ainda breve história) um despretensioso passatempo fadado a uma curtíssima vida útil, como todo o tipo de diversão considerada "descartável" e, a partir de enredos e desenhos cada vez mais apurados e sofisticados (com o fenômeno bastante interessante das graphic novels de autor), alcançaram o estatuto de arte, que o cinema tem nutrido bastante interesse pelo aproveitamento de seus materiais. Característica deveras peculiar ao cinema que, diga-se de passagem, sempre se manifestou favorável a adaptação de obras consagradas em outras linguagens, como o teatro, a literatura ou mesmo a ópera.
Se o cinema passou a pensar a si mesmo ao ter de lidar com a crescente influencia que os quadrinhos passaram a exercer na cultura pop, estes também passaram a colher frutos notáveis da influencia que também passaram a sofrer a partir de então (afinal, a máxima a qual preconiza que "a toda ação há uma reação" não vale somente no universo da física). Um próprio modo de pensar cinematográfico passou a vigorar nos quadrinhos, o que contribuiu em sua renovação. "Movimentos de câmera" e "enquadramento" deixaram de fazer parte apenas do linguajar fílmico e passaram a se adequar com cada vez maior desenvoltura nos argumentos de personagens de autores da nona arte (como os quadrinhos são também conhecidos) como Moebius, Hugo Pratt e Frank Miller (apenas para citar alguns poucos e consagrados exemplos), este último detentor de uma carreira profícua e muitíssimo bem-sucedida nas páginas de gibis, com suas personalíssimas reformulações de personagens como Wolverine e Demolidor, ou com argumentos de sua autoria, como as excelentes séries Ronin e Sin City.
Nos quadrinhos de Sin City, Miller faz uma homenagem velada aos filmes noir da época de ouro de Hollywood, com seus argumentos extremamente simples e seus personagens maniqueístas: o mundo em preto e branco. A ausência de cores nas páginas de Miller reflete, portanto, sua proposta inicial de choque de realidades, de concepções de mundos, de caráter (o "mocinho" versus o "bandido"), o que somente é atenuado em sua realidade quase monocromática por um(a) ou outro(a) cor/elemento dramático, como o vestido da Dama de Vermelho ou a pele do Bastardo Amarelo. Mais que uma referencia e uma homenagem aos antigos filmes policiais, o que Miller criou foi um universo extremamente fértil e verossímil, uma mitologia toda própria onde "(...) a lei existe apenas nos livros, a justiça no cano de uma arma e o amor nos braços de uma mulher fatal!".
Foi esta a proposta que conquistou o conceituado realizador Robert Rodriguez (das trilogias dos Pequenos Espiões e do Mariachi), que viu como ninguém as amplas e irrestritas possibilidades cinematográficas nas páginas de Miller. Mais do que ninguém, o voraz consumidor de quadrinhos Rodriguez soube reconhecer o caráter profícuo do criador de Sin City e o valor irrefutável de sua obra, possibilitando a sua realização pela Dimension Films e pelo Troublemaker Studios, de propriedade de Rodriguez.
Mas que não se incorra em algum engano: apesar do nome de Rodriguez constar nos créditos da direção, o filme, tanto quanto os quadrinhos, é obra de Miller. Longe de desmerecer o trabalho que Rodriguez teve na condução dos atores e do seu mais que comprovado conhecimento em cinema, o filme não é senão os quadrinhos em película. O que se quer dizer aqui é que o filme foi rodado se pautando pelos quadrinhos, não procurando novas fronteiras para os mesmos, mas se atendo aos seus limites: os diálogos essencialmente verborrágicos, os enquadramentos e os tons quase que essencialmente monocromáticos são os mesmos dos quadrinhos. Rodriguez levou as raias da obsessão a sua intenção em permanecer fiel a obra original e, nesse sentido, o crédito maior do filme é do próprio Miller, autor da obra original na qual a cinematográfica se pautou tão somente.
Portanto, se o Sin City de Miller e Rodriguez é, quiçá, a mais fiel adaptação de uma HQ já feita, certamente não é a melhor. Apesar do que pregam alguns "puristas" (e no universo dos quadrinhos encontram-se os mais radicais desta categoria de fãs), uma obra fílmica jamais se comparará a original na qual se baseou. Ora, tratam-se de linguagens diferentes e a película tem uma valencia, uma dinamica toda própria, diferente da folha de papel. Aí reside a existência de tantas vozes contrárias as adaptações: na impossibilidade de compreender uma premissa tão básica. Neste sentido, "fidelidade" não diz respeito propriamente a "fidedignidade" ao que está impresso no papel, mas, sobretudo, a algo mais imprecisável a primeira vista, a algo como o "espírito da obra". Ora, um livro pode ser revolucionário em vários aspectos (no modo como tece sua narrativa, seu vocabulário...), mas pode render uma adaptação fílmica burocrática, conservadora, sem o espírito de rebeldia do original, calcada numa reprodução essencialmente fidedigna de seu argumento. E esta é a única falha desse Sin City fílmico. Como já dito, Rodriguez não buscou novas fronteiras a revolucionária obra original de Frank Miller, mas se pautou pela sua imposição aos seus limites originais. Certamente, ele soube manter a referencia a obra original em seu argumento, mas pagou com sua liberdade enquanto diretor consagrado por obras referenciais como os filmes da trilogia Mariachi.
Por outro lado, esteticamente o filme é impecável. Tal como nos quadrinhos, a ausência de cor (a qual surge de vez em quando, para enfatizar aspectos dramáticos da obra) encontra perfeito acabamento na decisão de Rodriguez de se ater a obra original e no trabalho de seu fotógrafo e equipe de direção de arte e efeitos especiais. O elenco também cumpre papel fundamental no sucesso da obra. Nomes consagrados em Hollywood traduzem com competência a personalidade e o caráter de suas personagens, dentre os quais se destacam os três principais (sim, três protagonistas que se constituem em três vértices narrativos, três estórias da mundana e corrupta Basin City, com seus becos imundos e vielas escuras): Dwight (Clive Owen), um assassino decidido a impedir uma guerra entre os policiais e as nada convencionais prostitutas da Cidade Velha; Hartigan (Bruce Willis), um ex-policial dedicado a proteger uma antiga vítima de um pedófilo homicida, filho de um poderoso e influente senador; e Marv (Mickey Rourke, impecável!), um valentão decidido a descobrir o assassino da mulher por quem houvera se apaixonado e vingar a sua morte.
A bem da verdade, a adaptação fílmica de Sin City é uma obra única, pulsante e envolvente. Como um filme de Robert Rodriguez, contudo, é um filme limitado ao seu verdadeiro criador, Frank Miller. Mas, acima de tudo, é um impecável exercício estético, válido como uma fundamental obra de acesso ao fascinante e profícuo universo de Miller.